quarta-feira, 9 de agosto de 2017

Entrevista ao Rodrigo Pessoa





Rodrigo Pessoa é acadêmico do Curso de Letras (Bacharelado) da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS) e fez a primeira entrevista de sua vida comigo. Acho que ficou legal.




HENRIQUE PIMENTA

“Talvez depois disso tudo exista um tal de Henrique Pimenta, 
um homem apaixonado pela literatura. ”

É a primeira vez que faço uma entrevista, logo foi a primeira vez que abordei alguém pedindo para entrevistá-lo. Eu não sabia como seria, optei pela formalidade. Henrique disse que tentaria me responder – depois pediu para não chamá-lo de Senhor Henrique Pimenta, apenas Henrique ou apenas Pimenta.
Me disse 5 coisas sobre ele – antes mesmo de eu pedir – o que me ajudou bastante. Soube, então, que era um cristão, um homem que ama a família, dedicado à profissão. Quando me disse “talvez depois disso tudo exista um tal de Henrique Pimenta”, achei o máximo!, fiquei pensando: depois de quê eu encontraria Rodrigo Pessoa. Espero que sirva de reflexão a vocês também.

— Quando você se descobriu no universo das Letras?
Eu criei um marco inicial para várias coisas importantes em minha vida. Para questões de sexualidade, religião, literatura e guerra contra o mundo civilizado, esse marco inicia-se nos meus quinze anos de idade, em Natal-RN. Imagino, portanto, que tenha tomado gosto pela escrita nessa idade. Foi quando comecei a rabiscar os primeiros poemas. Nessa idade, conheci um amigo da vida inteira, ele se chama Elí Celso e foi o primeiro ser humano a dizer que o que eu escrevia tinha valor. Antes do Elí, meus contatos se restringiam a bate-papos com seres aparentemente humanoides. Ou, então, eu inventava, fingia, mentia. O universo letrado para mim, eu acho, começou assim. Agora, esses seres humanoides, vou contar uma curiosidade... melhor, não. Adolescência não é apenas uma alta concentração de hormônios, é também a detonação deles. E eu explodia meus hormônios escrevendo um bocado de besteiras.

— Qual é o seu livro de cabeceira?
Sinto decepcionar, mas não tenho um livro de cabeceira. Tenho apenas um travesseiro sob minha cabeça, via de regra, quando estou na cama. E, contudo, de pouco adianta esse travesseiro, visto que minha insônia quase sempre vence minha vontade de dormir.

— Há um fato engraçado sobre grande parte dos autores que gosto: todos fumam. Você, Henrique, entra no meu grupo de autores fumantes ou não fumantes?
É sacanagem dizer que quem fuma terá câncer. Quem fuma tem é um charme. Conheço pessoas maravilhosas que fumam. Nada tenho contra o fumo. Fumei, confesso. E fumava cerca de dois maços por dia. Sou filho de pai fumante, entende. Com vinte e poucos anos meio que parei de fumar porque não conseguia subir um lance de escadas sem “titubear”. Fumar é bom, num certo sentido. O Olavo de Carvalho, por exemplo, é fumante. Dos poucos autores que conheço, nenhum deles fuma. E todos são excelentes autores. Enfim... Fumar ou não fumar, é questão de escolha. Literatura não tem escolha.

— No cenário atual da música, você poderia contar de quem você gosta?
Brasil: Aldir Blanc. Fora do Brasil: Nick Cave.

— João Cabral de Melo Neto não acreditava em inspiração, você acredita?
Eu gostaria de confirmar essa negativa, mas não. Por experiência pessoal, sou obrigado a dizer que, além do famoso aspecto da “transpiração”, existe essa volátil e evanescente “inspiração”. Note, entretanto, que o que permanece de modo radical nesses dois aspectos é a “piração”. Deve ser por aí, eu acredito impiamente na piração. 

— Eu tenho grande dificuldade com poesia e ironicamente sou estudante de Letras. Admiro quem escreve poesia, pois para mim é coisa de pessoa muito inteligente. Seu primeiro livro, Henrique, foi em poesia. O segundo em prosa. Para você, como se dá a produção desses dois gêneros diferentes?
Na realidade, poesia e prosa são difíceis. Por quê? Porque literatura é arte. Porque poesia e prosa são duas expressões artísticas. Trabalhar com arte é escolher o desvio, o estranho, o nem sei o que dizer e eu escrevo exatamente porque não sei o que dizer. Ai, meu Deus! Texto poético e texto narrativo, resguardando suas características dessemelhantes, são iguais por serem textos; e o texto é tessitura, textura etc. Texto, falando sério, é assunto para Spider-Man e Penélope e Parcas, não para seres humanos de carne e osso. O problema é que mesmo assim mulheres e homens normais querem o que não lhes diz respeito. Felizmente, somos assim, um paradoxo constante. A gente se rasga e se sutura direto escrevendo. Dói, mas fazer o quê?! É ritual sadomasoquista, não tem jeito. Ocorre-me até algo que repetem que a Clarice Lispector falou ou escreveu: “Tem gente que costura para fora. Eu costuro para dentro.” Não sei se isso faz sentido. Se não faz, eis o sentido. Fui claro? Resumindo: poesia a gente faz porque precisa e prosa a gente faz porque necessita.

Como você sente – se é possível assim dizer – o nascer de uma história?
Histórias nascem de vários modos. O modo mais comum de nascer é assim, eu penetro nos meus trevosos abissos íntimos em busca de luz. O que sinto? Um misto de medo e excitação intelectual. Aí, eu me sento à mesa de meu escritório, diante do computador, e digito rápido algumas ideias quase que ao acaso. Imagino algo e vou digitando freneticamente. Mas, putz!, o computador estava desligado. Ligo a bagaça e recomeço o ritual do zero. Esqueço de mim com lerdeza. De súbito, lembro-me de que não devo me esquecer de que sou um homem casado e de que tenho dois filhos. Minha mente canta algo: “O texto, o texto, é tarde, é muito tarde.” Até que fique com um aspecto razoável, uma ou duas laudas, estou falando de texto?, costuma demorar muito. Quando consigo ler e entender o que escrevi, tento não gaguejar, e gaguejo o seguinte: “Para mim, está pronto.”  Engraçado, nem gaguejei dessa vez. Continuando, quando está pronto, dou um tempo, volto lá e embaralho tudo. E assim faço repetidas vezes. Mexo, remexo, embaralho, desembaralho. É o caos. Descarto um ás, mas não abro mão do coringa. Toque de trombeta. Quando o texto está pronto mesmo e digno de ser publicado? Resposta simples: nunca.

Clarice Lispector uma vez disse que seu conto “O ovo e a galinha” lhe é um mistério, ela não conseguia compreendê-lo. Isso já aconteceu a você, de algum escrito lhe ser ininteligível?
Não sou clariciano, mas comungo dessa situação. Há vários textos meus que me são ininteligíveis. Ou, então, eu estou mentindo agora só para confundir o leitor e me irmanar à bruxa Clarice Lispector.

A sua literatura tem um público-alvo?
Cara, eu só consegui dialogar com pouquíssimos leitores. Gostaria de citar os meus amigos Jovanelli (ex-chefe) e Casagrande (ex-aluno), pessoas que sempre me dão um “feedback” bastante consistente. Para além de amigos, são muitíssimo criteriosos em suas leituras, verdadeiros leitores ideais. Já levei alguns puxões de orelha desses caboclos, o que me obrigou a refazer parte de textos que não lhes agradaram. Meu público-alvo? Jovanelli, Casagrande e também o Renato Suttana (que prefaciou o meu livro). Por enquanto, as balas perdidas de meus tiros às cegas só acertaram esses alvos.

— O que você espera do leitor?
Espero que ele se sinta perturbado com o que lê. A propósito, conversei há poucos dias com a dona de uma livraria e ela me afirmou sobre isso o seguinte: “Que bom que sua literatura perturbe. Nesse mundo anestesiado de hoje, ter algo que perturbe é um alento.”

Para você, a literatura, assim como todas as outras artes, vai, um dia, acabar?
Se você me disser que todos os seres humanos vão morrer ao mesmo tempo, aí sim, a arte vai ter um fim. Adeus, literatura!

Você se considera um escritor ou dispensa os rótulos?
Eu sou um escritor e não dispenso rótulos. Eu sou um escritor resendense de literatura contemporânea. E podem colocar quantos rótulos a mais quiserem. O que não me servir, eu arranco e jogo no lixo.

Poderia enumerar cinco dos autores que lhe formaram como escritor?
Sim. Em termos de conto, Dalton Trevisan e João Antônio. Acho que um par desses já tá pra lá de bom.

Fazer Letras foi, possivelmente, a melhor decisão que tomei. Contudo, quando entrei na academia me deparei com um problema, uma certa pergunta de um professor: “Qual a definição de ‘literatura? ’”. Naquele momento eu me senti meio sem chão, não pelo fato de simplesmente não saber, mas porque durante toda a aula não achei, em mim, uma resposta para algo que tanto aprecio – ganhamos como resposta que a literatura não é definível. E você, poderia definir “literatura”?
Literatura é o ganha-pão e o ganha-vinho do meu espírito. Mas essa é uma definição pessoal.

— Literatura e política andam juntas? De mãos dadas? Elas têm uma relação?
Perdão, sinto desapontá-lo, mas eu sou apolítico. Não me sinto, pois, à vontade para tratar de política e menos ainda no viés da literatura.

Qual seria, para você, a função do artista na sociedade, Henrique?
Função? Desconheço qualquer agrupamento social significativo sem um artista. Penso que basta que um artista exista. E a existência de todos os artistas está subjugada à sua escravidão à arte. A função de um artista é ele ser escravo da arte. A função de um artista é ele existir em deplorável estado de estesia estética. A função de um artista é ele afirmar: “Ei, olhem para mim, eu sou o cara.” Depois dessa afirmação exibicionista, nasce a sociedade. A sociedade com sanidade mental usa e abusa de seus artistas. Quanto mais abusa, mais sanidade tem.

Você acha que as produções literárias de Mato Grosso do Sul estão a um nível “universal”?
Temos bons autores no universo de MS. Mas é melhor que eu não os nomeie porque não sou crítico literário. Quem se interessar, comece a ler os autores que existem em MS. Com certeza, os leitores terão surpresas. Muitas surpresas!

A mulher faz falta na literatura? Me refiro à presença feminina no meio autoral, não dentro de um livro.
As poetas Marília Garcia e Angélica Freitas junto com as ficcionistas Patrícia Melo e Ana Paula Maia vão te dar uma surra se souberem o que você acabou de me perguntar. Há excelentes autoras publicando feito loucas. As mulheres mandam ver!

— Para você, qual o poder de impacto da literatura na vida de alguém?
Vai depender muito desse “alguém”. Literatura nada significa para boa parcela da população mundial de alguéns. Agora, se for um alguém que tenha um pouquinho de sensibilidade e seja apresentado à literatura de modo agradável, é bem provável que um caso de amor possa ser iniciado.

— O que você acha que seria do homem sem a literatura? Eu não consigo pensar nessa possibilidade, o que me leva a crer numa possível inexistência.
Eu só não consigo viver sem Deus, sem a Bete, minha mulher, e sem a Thaís e o Luís, meus filhos. Eles são a minha existência. Sem literatura, eu ainda viveria “de boas”. Mas, é lógico, existir com literatura é supimpa. Literatura é uma deliciosa pimentinha no prato feito da vida.

— Em suas leituras de textos literários contemporâneos você tem sentido alguma tendência surgir? O que caracterizaria essa possível tendência?
Uma tendência em conto contemporâneo é a condensação das premissas do conto clássico. A mensagem é passada de forma crua, com sangue quente e vitalidade mórbida. Outra tendência do conto contemporâneo é um lance meio CNBB de “dar voz aos excluídos e às minorias”. São minhas impressões de leitor, porque, repito, não sou crítico literário.

— Já chamaram a literatura de Rachel de Queiroz de “machista”. Creio que Caio Fernando Abreu sofreu com alguns de seus textos de temáticas homoafetivas. Há autores que já foram acusados de racismo. Há ainda muitos exemplos, mas para ser sucinto: o que você acha dessas acusações?
Eu não atirarei a primeira pedra. Cada um faça o que bem quiser da vida e assuma as consequências (boas e/ou más)  de suas escolhas.

— Seus textos já foram acusados de algo nesse sentido? E se foram como você recebe isso?
No meu caso, o livrinho de sonetos fesceninos que escrevi é considerado pornográfico, ou seja, é lido apenas pelo viés do sexo explícito. Mas há muito mais do que cópula na porra desse livro. Os leitores fizeram uma sacanagem comigo. Eu não sou um autor pornô. É um rótulo que retiro do meu livreto e jogo no lixo.

— Recentemente li um texto da Cecilia Meireles, chamado “Liberdade”. Apaixonei-me instantaneamente. Em si eu já acho a palavra “liberdade” bonita, e ela ainda me soa bem aos ouvidos. Quanto ao significado acho poético, transformador e inatingível. Você poderia me falar sobre liberdade?
Devido a muitas responsabilidades assumidas como mulheres e homens que vivem em sociedade, creio que não devamos ser tão poéticos assim. A liberdade que existe para nós se chama liberdade condicional. A liberdade que nos cabe é limitada, cela e célula. Mas você cita Cecília e sua alta literatura. Sou obrigado, pois, a informar que ela nunca foi um ser humano, porque é para todo sempre um ser iluminado. E a literatura, mesmo alta literatura, é fingimento. E a vida? Responda-nos a própria Cecília Meireles: “a vida, a vida, a vida, / a vida só é possível / reinventada.”


Rodrigo Pessoa
Campo Grande-MS, abril de 2017

*** Dia 15 de agosto, terça-feira, estarei na UEMS com a romancista (e psicanalista) Isloany Machado e o memorialista (e professor universitário) Flávio Dobashi conversando um pouco sobre literatura no I Encontro da Produção Literária de Mato Grosso do Sul (eplms). Escolhi o seguinte tema: "Eu sou um escritor regional?".
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