Rodrigo Pessoa é acadêmico do Curso de Letras (Bacharelado) da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS) e fez a primeira entrevista de sua vida comigo. Acho que ficou legal.
HENRIQUE PIMENTA
“Talvez depois disso tudo exista um tal
de Henrique Pimenta,
um homem apaixonado pela literatura. ”
É a primeira vez que faço uma
entrevista, logo foi a primeira vez que abordei alguém pedindo para
entrevistá-lo. Eu não sabia como seria, optei pela formalidade. Henrique disse
que tentaria me responder – depois pediu para não chamá-lo de Senhor Henrique
Pimenta, apenas Henrique ou apenas Pimenta.
Me disse 5 coisas sobre ele – antes
mesmo de eu pedir – o que me ajudou bastante. Soube, então, que era um cristão,
um homem que ama a família, dedicado à profissão. Quando me disse “talvez
depois disso tudo exista um tal de Henrique Pimenta”, achei o máximo!, fiquei
pensando: depois de quê eu encontraria Rodrigo Pessoa. Espero que sirva de
reflexão a vocês também.
— Quando você se descobriu no universo
das Letras?
Eu criei um marco inicial para várias
coisas importantes em minha vida. Para questões de sexualidade, religião,
literatura e guerra contra o mundo civilizado, esse marco inicia-se nos meus
quinze anos de idade, em Natal-RN. Imagino, portanto, que tenha tomado gosto
pela escrita nessa idade. Foi quando comecei a rabiscar os primeiros poemas.
Nessa idade, conheci um amigo da vida inteira, ele se chama Elí Celso e foi o
primeiro ser humano a dizer que o que eu escrevia tinha valor. Antes do Elí, meus
contatos se restringiam a bate-papos com seres aparentemente humanoides. Ou,
então, eu inventava, fingia, mentia. O universo letrado para mim, eu acho,
começou assim. Agora, esses seres humanoides, vou contar uma curiosidade...
melhor, não. Adolescência não é apenas uma alta concentração de hormônios, é
também a detonação deles. E eu explodia meus hormônios escrevendo um bocado de
besteiras.
— Qual é o seu livro de cabeceira?
Sinto decepcionar, mas não tenho um
livro de cabeceira. Tenho apenas um travesseiro sob minha cabeça, via de regra,
quando estou na cama. E, contudo, de pouco adianta esse travesseiro, visto que
minha insônia quase sempre vence minha vontade de dormir.
— Há
um fato engraçado sobre grande parte dos autores que gosto: todos fumam. Você,
Henrique, entra no meu grupo de autores fumantes ou não fumantes?
É
sacanagem dizer que quem fuma terá câncer. Quem fuma tem é um charme. Conheço pessoas
maravilhosas que fumam. Nada tenho contra o fumo. Fumei, confesso. E fumava
cerca de dois maços por dia. Sou filho de pai fumante, entende. Com vinte e
poucos anos meio que parei de fumar porque não conseguia subir um lance de
escadas sem “titubear”. Fumar é bom, num certo sentido. O Olavo de Carvalho,
por exemplo, é fumante. Dos poucos autores que conheço, nenhum deles fuma. E
todos são excelentes autores. Enfim... Fumar ou não fumar, é questão de
escolha. Literatura não tem escolha.
— No
cenário atual da música, você poderia contar de quem você gosta?
Brasil: Aldir Blanc. Fora do Brasil:
Nick Cave.
— João Cabral de Melo Neto não
acreditava em inspiração, você acredita?
Eu gostaria de confirmar essa negativa,
mas não. Por experiência pessoal, sou obrigado a dizer que, além do famoso
aspecto da “transpiração”, existe essa volátil e evanescente “inspiração”.
Note, entretanto, que o que permanece de modo radical nesses dois aspectos é a
“piração”. Deve ser por aí, eu acredito impiamente na piração.
— Eu tenho grande dificuldade com
poesia e ironicamente sou estudante de Letras. Admiro quem escreve poesia, pois
para mim é coisa de pessoa muito inteligente. Seu primeiro livro, Henrique, foi
em poesia. O segundo em prosa. Para você, como se dá a produção desses dois
gêneros diferentes?
Na realidade, poesia e prosa são
difíceis. Por quê? Porque literatura é arte. Porque poesia e prosa são duas
expressões artísticas. Trabalhar com arte é escolher o desvio, o estranho, o
nem sei o que dizer e eu escrevo exatamente porque não sei o que dizer. Ai, meu
Deus! Texto poético e texto narrativo, resguardando suas características
dessemelhantes, são iguais por serem textos; e o texto é tessitura, textura
etc. Texto, falando sério, é assunto para Spider-Man e Penélope e Parcas, não
para seres humanos de carne e osso. O problema é que mesmo assim mulheres e
homens normais querem o que não lhes diz respeito. Felizmente, somos assim, um
paradoxo constante. A gente se rasga e se sutura direto escrevendo. Dói, mas fazer
o quê?! É ritual sadomasoquista, não tem jeito. Ocorre-me até algo que repetem
que a Clarice Lispector falou ou escreveu: “Tem gente que costura para fora. Eu
costuro para dentro.” Não sei se isso faz sentido. Se não faz, eis o sentido.
Fui claro? Resumindo: poesia a gente faz porque precisa e prosa a gente faz
porque necessita.
— Como você sente – se é possível assim dizer
– o nascer de uma história?
Histórias nascem de vários modos. O
modo mais comum de nascer é assim, eu penetro nos meus trevosos abissos íntimos
em busca de luz. O que sinto? Um misto de medo e excitação intelectual. Aí, eu me
sento à mesa de meu escritório, diante do computador, e digito rápido algumas
ideias quase que ao acaso. Imagino algo e vou digitando freneticamente. Mas, putz!,
o computador estava desligado. Ligo a bagaça e recomeço o ritual do zero. Esqueço
de mim com lerdeza. De súbito, lembro-me de que não devo me esquecer de que sou
um homem casado e de que tenho dois filhos. Minha mente canta algo: “O texto, o
texto, é tarde, é muito tarde.” Até que fique com um aspecto razoável, uma ou
duas laudas, estou falando de texto?, costuma demorar muito. Quando consigo ler
e entender o que escrevi, tento não gaguejar, e gaguejo o seguinte: “Para mim, está
pronto.” Engraçado, nem gaguejei dessa
vez. Continuando, quando está pronto, dou um tempo, volto lá e embaralho tudo.
E assim faço repetidas vezes. Mexo, remexo, embaralho, desembaralho. É o caos.
Descarto um ás, mas não abro mão do coringa. Toque de trombeta. Quando o texto está
pronto mesmo e digno de ser publicado? Resposta simples: nunca.
— Clarice Lispector uma vez disse que seu
conto “O ovo e a galinha” lhe é um mistério, ela não conseguia compreendê-lo.
Isso já aconteceu a você, de algum escrito lhe ser ininteligível?
Não sou clariciano, mas comungo dessa
situação. Há vários textos meus que me são ininteligíveis. Ou, então, eu estou
mentindo agora só para confundir o leitor e me irmanar à bruxa Clarice
Lispector.
— A sua literatura tem um público-alvo?
Cara, eu só consegui dialogar com
pouquíssimos leitores. Gostaria de citar os meus amigos Jovanelli (ex-chefe) e
Casagrande (ex-aluno), pessoas que sempre me dão um “feedback” bastante
consistente. Para além de amigos, são muitíssimo criteriosos em suas leituras,
verdadeiros leitores ideais. Já levei alguns puxões de orelha desses caboclos,
o que me obrigou a refazer parte de textos que não lhes agradaram. Meu
público-alvo? Jovanelli, Casagrande e também o Renato Suttana (que prefaciou o
meu livro). Por enquanto, as balas perdidas de meus tiros às cegas só acertaram
esses alvos.
— O que você espera do leitor?
Espero que ele se sinta perturbado com
o que lê. A propósito, conversei há poucos dias com a dona de uma livraria e
ela me afirmou sobre isso o seguinte: “Que bom que sua literatura perturbe.
Nesse mundo anestesiado de hoje, ter algo que perturbe é um alento.”
— Para você, a literatura, assim como todas as
outras artes, vai, um dia, acabar?
Se você me disser que todos os seres
humanos vão morrer ao mesmo tempo, aí sim, a arte vai ter um fim. Adeus,
literatura!
— Você se considera um escritor ou dispensa os
rótulos?
Eu sou um escritor e não dispenso
rótulos. Eu sou um escritor resendense de literatura contemporânea. E podem
colocar quantos rótulos a mais quiserem. O que não me servir, eu arranco e jogo
no lixo.
— Poderia enumerar cinco dos autores que lhe
formaram como escritor?
Sim. Em termos de conto, Dalton
Trevisan e João Antônio. Acho que um par desses já tá pra lá de bom.
— Fazer Letras foi, possivelmente, a melhor
decisão que tomei. Contudo, quando entrei na academia me deparei com um
problema, uma certa pergunta de um professor: “Qual a definição de ‘literatura?
’”. Naquele momento eu me senti meio sem chão, não pelo fato de simplesmente
não saber, mas porque durante toda a aula não achei, em mim, uma resposta para
algo que tanto aprecio – ganhamos como resposta que a literatura não é
definível. E você, poderia definir “literatura”?
Literatura é o ganha-pão e o ganha-vinho
do meu espírito. Mas essa é uma definição pessoal.
— Literatura e política andam juntas?
De mãos dadas? Elas têm uma relação?
Perdão, sinto desapontá-lo, mas eu sou
apolítico. Não me sinto, pois, à vontade para tratar de política e menos ainda
no viés da literatura.
— Qual seria, para você, a função do artista
na sociedade, Henrique?
Função? Desconheço qualquer agrupamento
social significativo sem um artista. Penso que basta que um artista exista. E a
existência de todos os artistas está subjugada à sua escravidão à arte. A função
de um artista é ele ser escravo da arte. A função de um artista é ele existir
em deplorável estado de estesia estética. A função de um artista é ele afirmar:
“Ei, olhem para mim, eu sou o cara.” Depois dessa afirmação exibicionista, nasce
a sociedade. A sociedade com sanidade mental usa e abusa de seus artistas.
Quanto mais abusa, mais sanidade tem.
— Você acha que as produções literárias de
Mato Grosso do Sul estão a um nível “universal”?
Temos bons autores no universo de MS.
Mas é melhor que eu não os nomeie porque não sou crítico literário. Quem se
interessar, comece a ler os autores que existem em MS. Com certeza, os leitores
terão surpresas. Muitas surpresas!
— A mulher faz falta na literatura? Me refiro
à presença feminina no meio autoral, não dentro de um livro.
As poetas Marília Garcia e Angélica
Freitas junto com as ficcionistas Patrícia Melo e Ana Paula Maia vão te dar uma
surra se souberem o que você acabou de me perguntar. Há excelentes autoras publicando
feito loucas. As mulheres mandam ver!
— Para você, qual o poder de impacto da
literatura na vida de alguém?
Vai depender muito desse “alguém”.
Literatura nada significa para boa parcela da população mundial de alguéns.
Agora, se for um alguém que tenha um pouquinho de sensibilidade e seja
apresentado à literatura de modo agradável, é bem provável que um caso de amor
possa ser iniciado.
— O que você acha que seria do homem
sem a literatura? Eu não consigo pensar nessa possibilidade, o que me leva a
crer numa possível inexistência.
Eu só não consigo viver sem Deus, sem a
Bete, minha mulher, e sem a Thaís e o Luís, meus filhos. Eles são a minha
existência. Sem literatura, eu ainda viveria “de boas”. Mas, é lógico, existir
com literatura é supimpa. Literatura é uma deliciosa pimentinha no prato feito
da vida.
— Em suas leituras de textos literários
contemporâneos você tem sentido alguma tendência surgir? O que caracterizaria
essa possível tendência?
Uma tendência em conto contemporâneo é
a condensação das premissas do conto clássico. A mensagem é passada de forma
crua, com sangue quente e vitalidade mórbida. Outra tendência do conto
contemporâneo é um lance meio CNBB de “dar voz aos excluídos e às minorias”.
São minhas impressões de leitor, porque, repito, não sou crítico literário.
— Já chamaram a literatura de Rachel de
Queiroz de “machista”. Creio que Caio Fernando Abreu sofreu com alguns de seus
textos de temáticas homoafetivas. Há autores que já foram acusados de racismo.
Há ainda muitos exemplos, mas para ser sucinto: o que você acha dessas
acusações?
Eu não atirarei a primeira pedra. Cada
um faça o que bem quiser da vida e assuma as consequências (boas e/ou más) de suas escolhas.
— Seus textos já foram acusados de algo
nesse sentido? E se foram como você recebe isso?
No meu caso, o livrinho de sonetos
fesceninos que escrevi é considerado pornográfico, ou seja, é lido apenas pelo
viés do sexo explícito. Mas há muito mais do que cópula na porra desse livro.
Os leitores fizeram uma sacanagem comigo. Eu não sou um autor pornô. É um rótulo
que retiro do meu livreto e jogo no lixo.
— Recentemente li um texto da Cecilia
Meireles, chamado “Liberdade”. Apaixonei-me instantaneamente. Em si eu já acho
a palavra “liberdade” bonita, e ela ainda me soa bem aos ouvidos. Quanto ao
significado acho poético, transformador e inatingível. Você poderia me falar
sobre liberdade?
Devido a muitas responsabilidades
assumidas como mulheres e homens que vivem em sociedade, creio que não devamos
ser tão poéticos assim. A liberdade que existe para nós se chama liberdade
condicional. A liberdade que nos cabe é limitada, cela e célula. Mas você cita
Cecília e sua alta literatura. Sou obrigado, pois, a informar que ela nunca foi
um ser humano, porque é para todo sempre um ser iluminado. E a literatura,
mesmo alta literatura, é fingimento. E a vida? Responda-nos a própria Cecília
Meireles: “a vida, a vida, a vida, / a vida só é possível / reinventada.”
Rodrigo Pessoa
Campo
Grande-MS, abril de 2017
*** Dia 15 de agosto, terça-feira, estarei na UEMS com a romancista (e psicanalista) Isloany Machado e o memorialista (e professor universitário) Flávio Dobashi conversando um pouco sobre literatura no I Encontro da Produção Literária de Mato Grosso do Sul (eplms). Escolhi o seguinte tema: "Eu sou um escritor regional?".
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