domingo, 26 de dezembro de 2021

A LEITURA DE ISLOANY MACHADO

 

Ei, Henrique!

 

Eu estou com seu livro em mãos desde março e só agora consegui sentar para ler, nesse pequeno arremedo de férias. Andei ocupada demais psicanalisando, que é o mesmo que dizer: testemunhando ativamente as eviscerações verbais de pessoas que se propõem a uma análise, que é o mesmo que dizer: escrevem sem caneta, teria dito Lacan. Você colocou as vísceras no papel. As suas? Nunca saberemos. Mesmo que Freud tenha dito, embasbacado, que os escritores conseguem (não se sabe exatamente como) dar um tratamento estético às suas fantasias infantis para que se tornem suficientemente tragáveis à leitura do outro, qualquer coisa que vá para o papel já não é a coisa original, mesmo em textos biográficos. Aquela coisa toda de que a realidade é psíquica etc. e tal.

 

Se tem algo em comum entre a psicanálise e a literatura é que ambas são (ao menos deveriam ser) feitas da mesma matéria: aquilo que há de mais humano. Digo o humano em sua forma bruta, quando vem ao mundo e precisa entender o que está acontecendo. Mas por que, diabos, eu não posso matar esse outro que me causa tanto ódio?, ou aquele que não atende minhas demandas na hora que eu bem entendo?, ou aquele, ainda, com quem tenho de dividir algo que eu não gostaria? Não à toa Freud se referia às crianças como “pequenos perversos polimorfos”. A civilização, com seu empuxo à culpabilização dos sujeitos e ao esmagamento das pulsões, cria, dentre outras coisas (as enfermidades psíquicas, por exemplo), os discursos massivos, a assepsia das manifestações, inclusive literárias.

 

Henrique, o que você faz neste livro é pegar as vísceras do humano, expor, investigar com lente de aumento. Porque é preciso mostrar às pessoas que quando tentamos esconder algo de nós mesmos, essa coisa volta com ainda mais força. Imagine se um sujeito decidisse procurar análise para fazer um discurso elaborado do quanto conseguiu esmagar bem suas pulsões? Não funciona! Nem na análise, nem na literatura e nem numa vida que passe ao largo dessas duas coisas. Se alguém chega numa análise é porque já tentou tudo o que podia para parecer que está tudo bem limpinho, nenhum crime cometido, nenhum resquício de sangue na cena, como jogar “o celular com força no chão, tentando espatifar os meus crimes”. Besteira! Se a literatura serve para alguma coisa é para entendermos que humanos somos assim, sujos, fedorentos, depravados, odiosos. Você mostra isso com o mais fino da ironia, dei muitas risadas. Quando a gente ri da desgraça (azul, que seja) é porque o trabalho de sublimação funcionou, porque o leitor aliviou suas tensões e depois pode fechar o livro e voltar a viver “civilizadamente”.

 

Gostei muito do estilo da escrita, das frases curtas, orais: “Engulo o tarja”. Admiro a coragem de não ceder ao discurso massivo do politicamente correto: “Inteligente, a cachorra”. Anotei várias passagens com as quais me identifiquei. Eu também odeio motos e sempre que uma passa berrando pela avenida em frente ao meu apartamento, desejo em voz alta que o piloto caia e se rale todo, e se rale muito. Claro que eu chamaria o socorro, porque ainda sou civilizada e aprendi bem o amor cristão ao próximo, mas que desejo, desejo. Tem um livro do João Tordo que estou lendo pingado em que o narrador diz: “desejei aquilo que um pai nunca deveria desejar – que o dia seguinte chegasse depressa, o dia em que a mãe viria buscá-la e eu não teria de a ver durante uma semana. Tornara-se um caso difícil na minha vida”.

 

Alguém poderia dizer “ah, mas é um homem que escreveu isso”. Para tanto respondo com a escrita de uma mulher, Inês Pedrosa: “não sei se será sensato pôr as culpas todas nos homens, querida Natália, porque talvez faça falta à libertação total de que vocês andam a tratar essa capacidade de amar a celulite, as lágrimas, as rugas e as ancas largas de uma mulher que só os homens parecem, apesar das campanhas contrárias, teimosamente manter”. Tudo isso para dizer que não há culpados versus inocentes. Pequenos perversos polimorfos no inconsciente, somos todos culpados, diz a moral sexual civilizada. Alguém te disse que seus narradores e suas personagens são bolsominionzinhos? Pois é, lá no pior de nós, talvez todos sejamos. A diferença é que lutamos contra nosso pior e, no melhor dos casos, não matamos, não ateamos fogo nos outros, não achamos uma boa ideia carregar uma arma na cintura. Por quê? Porque há potencial destrutivo em nós, diria Freud no Mal-estar. Não temos como sublimar tudo, não temos como vaporizar as pulsões, as palavras ajudam nisso, mas não dão conta de tudo. Inventaram a palavra injuriosa para que não metamos o pedaço de pau na cabeça do outro, disse Freud também.

 

Os sentimentos de ciúme, ódio, degradação sexual do outro, elementos presentes no seu texto, são demasiadamente humanos e dizem de uma posição infantil comum a todos, nuns mais intensos, noutros menos. Na passagem “Não usava ódio, álcool, cigarro nem outras drogas”, me arrepiou a beleza que você conseguiu construir com as palavras. Dizer sem precisar dizer, a frase como um vórtice de significados. Outro exemplo: “Rosa não queria filhos, pois já possuía uma verruga com pelos na coxa direita”. É como dizer: precisa mesmo ter uma razão para alguém não querer ter filhos? Achei genial! Outro ainda: “A Rana dessecou meu coração com veneno. O amor é veneno forte”. Gostei muito dessa frase porque ando às voltas com o veneno. São muitos exemplos que dizem da beleza de sua literatura.

 

Ainda que falemos em humanidade como um todo, só há possibilidade de trabalho quando pensamos na singularidade, tanto na psicanálise como na literatura. Você estava preocupado se eu conseguiria ler suas vísceras sem precisar de pausa a cada texto, pois bem, é com isso que eu trabalho. Já ouvi tantas coisas cruas, que suas letras, recobertas pela estética literária, são músicas para meus olhos.

 

Outra coisa notável no seu texto são as diversas referências literárias (e outras) que povoam cada conto. Mesmo o cara que detesta motos pode ficar roseanamente “comovido como o diabo”. Ou aquele que fica doidão ao estilo “Júpiter Maçã”. O narrador aliviado porque o rapaz que queria “que o mundo acabasse, sugerindo suicídio” não leu Werther. Ou Penélope, a esposa que deveria, mas não espera o marido. Ela não faz nós enquanto espera, ela dá nó no marido cornudo. Aliás, dois ou três textos sobre homens que levam guampa e, machões, ficam inertes. É isso! Todos temos nossas fragilidades, nossas formas de gozar.

 

Enfim, seu livro me fez companhia e me trouxe vários alívios. Para alguns pode parecer insuportável remexer nas vísceras, para mim, é o que me faz sentir humana. Obrigada! E parabéns pelo livro.

 

Campo Grande, 25 de dezembro de 2021

Isloany Machado

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