quarta-feira, 2 de fevereiro de 2022

DURA LIÇÃO, RENATO SUTTANA



DURA LIÇÃO


Não é a primeira vez que leio um livro de Renato Suttana e quase que automaticamente o meu espírito percebe algo de lusitano em sua poética. Para me ater apenas às sensações e aos sentidos de “Dura lição”, os poemas são curtos e vazados em redondilhas, remetendo às cantigas óbvias, tanto as medievalescas quanto as outras que minaram a literatura portuguesa – e continuam em “ando”, minando, dominando –, embora o ritmo demarcado pelo poeta em pauta responda mais ao diapasão cerebrino, deixando o diapasão cardíaco em segundo plano; há, ainda, em termos formais, os sonetos, seguindo o modelo tradicional, português. Acerca do feudo temático, assim como dos seus subtemas, é reduzido à viagem, à busca, à alteridade e ao desamparo, ao modo da pátria de Camões, que, por suas qualidades navegadora e expansora, abusou, com primazia, desse material. Em suma, talvez eu queira afirmar que Suttana seja um poeta esquisito, um misto de português e brasileiro. E, mais, um poeta atual, e das antigas.


Em meio a suas esquisitices, compõe textos com teor lapidar, de lápide mesmo, de inscrições em túmulos, a serem lidas com contrição. Mas os seus textos não remetem a lágrimas ordinárias de rosto entristecido. Remetem a questões existenciais de ordem filosófica e/ou religiosa, questões que não se resolvem, por vezes, nem em vida nem em morte, tornando-se, assim, questões eternas, insolúveis. No segundo poema do livro, “Não tenho”, a linha-mestra é lançada: “Não tenho força para o erro, / nem a pretensão do acerto”. O que pode, em início de percurso, um sujeito lírico desfalecido? Creio que esse desfalecimento seja tão humano, mas tão humano, que o sujeito com sua lira minguada irmana-se a seus leitores. Assim é que a literatura trabalha, nem errando, por força, nem acertando, por pretensão, mas humanizando a existência, irmanando-se a seus partícipes: leitores, vozes, discursos, ideias, sentimentos, silêncios etc. O bacana de tudo isso é que a falibilidade no campo das certezas transfigura-se fácil, quando o urdimento da poiésis adquire forma por meio de um estilo bem composto, em êxito literário. Esse é o caso de “Dura lição”.


Dentre alguns símbolos recorrentes, destaca-se o vento. O vento amplia seu espectro como ar, brisa, veículo de navegação, veículo de voz, e sugere um rumo, e promove uma rota, mas não há segurança para que alguém se sinta apto a uma viagem, seja para terras estrangeiras, seja para a intimidade estranha de si mesmo. A busca permanece em suspense, paralítica, sob domínio da dúvida. O ser humano hesita no que lhe é ancestral, o desejo de ir além do comezinho, arriscar-se, sujeitar-se à ventura. Nesse ponto, com a motivação do deslocamento de ar, em que o movimento deveria ser o foco de tudo, em que o eu lírico deveria ser um aspirante à travessia, movimento e eu lírico desfalecem, optando apenas pela memória em forma de mesmice e pelo porvir em forma de fantasia. Embora não se enlacem nas malhas da ilusão, recebem instantaneamente os golpes da desilusão. E a vida segue, estática.


Mas o repouso do que se se rejeitou e, de pronto, foi rejeitado é um repouso ativo, porque o vento persiste, porque as viagens latejam em potência, porque os seres humanos não se contentam com o universo perceptível aos cinco sentidos. A persona poética de Renato Suttana lança a “pergunta / que no escuro se perdia”, lança muitas perguntas a pessoas, a si, à natureza, e recebe como resposta “sílabas de brisa / que nada diziam”. O que se tem na aparência, é o homem, só, pesquisando, desamparado. Sempre no limite, bem representado por outro símbolo rotineiro, a porta, uma porta que nunca se abre, ou, no máximo, está aberta a trevas. A voz nos poemas não tem força nem habilidade suficiente para clamar pelo outro (clama, contudo), para cantar o outro (canta, contudo), restando em solidão de ânsias e de angústias, no “excêntrico dos momentos”. A dúvida sem resposta é a solução do problema?


A vida vem pelo ar. Os vírus vêm pelo ar. A parceria da vida com a morte e a necessidade premente que o eu tem do outro causam um rebuliço psíquico no mundo de hoje. Certas situações dramáticas, e até mesmo trágicas, como a atual pandemia, por exemplo, desmascaram o que há de pior na civilização. Os egos apresentam seus horrores. E, claro, em diversos momentos os egos horrorosos se fazem presentes com essa configuração selvática. Penso que até para nós entendermos, ao menos em parte, o aqui cruel e o agora medonho, o livro de Suttana pode nos socorrer. Em várias instâncias, há um ser à porta do outro, há um ser em busca do outro, há um ser que necessita do outro: esse outro de carne e osso, independente de sexo, ou principalmente sexual; um amor, talvez; talvez, Deus. Mas o outro nunca atende ao chamado. A porta é limite e limiar. A porta é trevas, a porta é silêncio, é corta-vento, é fim de viagem, é fim de busca, é fim de alteridade.


Enfim, “Dura lição” trata-se de uma aprendizagem melancólica das incertezas, trata-se de uma aprendizagem singular acerca de alguns dos quês capitais da Humanidade, compartilhada por meio de uma eloquência contestável, mas, de um formato fatal, poemas de estética irrepreensível. Um livro labiríntico, pleno de arbitrários paradoxos, permitindo-nos entender que o fim é apenas o início do caminho e que devemos, portanto, permanecer na jornada, graves, enquanto o fôlego suportar. Sim, devemos ir: “E ir assim, todo ardimento, / num engano formidando / que se chama a vida inteira.”



Um soneto de "Dura lição"

Como também me perco suavemente 
a cada tentativa e a cada passo 
e me afundo num lúcido cansaço 
de tudo quanto o mundo vário mente; 

e não sei de argumento pertinente 
para explicar o gesto que não faço 
e a inércia que me leva, inane e lasso, 
até o centro do dia indiferente; 

como também me faltam as razões 
e sobretudo a bússola e o sextante 
e o mapa e um horizonte, a cada instante. 

(Vou só, num retrocesso, entre monções, 
calmo entanto da rota que desdenho: 
da visão que não move meu empenho.) 


*** "Dura lição" foi um dos ganhadores do Prêmio Leia MS 2020. 
*** Interessados em adquirir o livro, favor entrar em contato com o autor.
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