sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

Do gato morto

 
Half cat - by Roland 3791

Soneto do gato morto (Vinicius de Moraes)

Um gato vivo é qualquer coisa linda
Nada existe com mais serenidade
Mesmo parado ele caminha ainda
As selvas sinuosas da saudade

De ter sido feroz. À sua vinda
Altas correntes de eletricidade
Rompem do ar as lâminas em cinza
Numa silenciosa tempestade.

Por isso ele está sempre a rir de cada
Um de nós, e ao morrer perde o veludo
Fica torpe, ao avesso, opaco, torto

Acaba, é o antigato; porque nada
Nada parece mais com o fim de tudo
Que um gato morto.


Elegia para o gato morto (Domingos da Mota)

Com os olhos pregados no infinito,
no mais fundo de si, já revirados
e os bigodes suspensos pelo grito
que alvoroça as pombas nos telhados

e com o céu da boca, se aflito,
mesmo à beira do fim, agoniado,
e o pêlo sedoso tão esquisito,
de súbito a ficar amarrotado,

na procura apressada de outra vida
renascida das sete que viveu,
que não vê, não encontra, pois perdida
como alma penada lá no céu

dos gatos: foi assim, quase descrente,
que vi o gato morto, de repente.



Um gatinho sem miau (Henrique Pimenta)

O sol ia de quente sobre o asfalto;
Eu ia à medicina, da calçada,
Tranquilo, bom cristão, quando de assalto
Uns olhos de felino, que maçada!...

Constranjo-me de pronto pelo falto
Na coisa se cozendo mal passada,
Seu sangue com seus bofes de ressalto,
E a vista do que vejo, tão cansada!...

O vômito se fez; eu engoli.
Mau cheiro do pobrinho oriental.
Há moscas! Mais havia por ali!...

Verei o que ainda vejo no que vi
Agora, bem na frente do hospital:
Agoura-me esse extinto de seu mal.


*** Domingos da Mota é um poeta português que admiro. Gostaria de recomendar o seu blogue: Ao Rés do Nada.

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